Indiscutivelmente, a figura do cardeal maior da Igreja de Roma é um personagem importante para a história do planeta. Seja ele quem for, atrai atenções e comentários, das pessoas, religiosas ou não, e da mídia. É um homem, portanto, que exorbita o interesse de católicos, tão somente.
Não vou me demorar enquadrando a presença da filosofia católica sobre a Terra, desde que Constantino o reconheceu como “religião oficial do Estado Romano”. Tampouco irei tecer comentários sobre as ações da cúria, sejam elas positivas ou negativas, nem tratarei de aspectos correlacionados à liturgia e aos dogmas da crença oficial cristã. Penso que os fatos do passado pertencem ao cenário e ao tempo em que ocorreram, em face da realidade espiritual de seus protagonistas e dos demais habitantes dos lugares em que ocorreram, localmente ou em aspecto mais amplo, em termos planetários.
Vou me debruçar sobre a imagem, as palavras e a postura do atual Chefe da Igreja Católica, o cardeal argentino Bergoglio, papa Francisco. E as impressões serão de um espírita que acredita no Humanismo, na Pluralidade, no Livre Pensar e na perspectiva de modificação do ambiente planetário a partir da presença e da atuação das pessoas.
Francisco promove um verdadeiro choque de gestão na vetusta religião e implementa, aos poucos, uma postura bastante diferente dos seus antecessores. Se focarmos a comparação com João Paulo II (o polonês Wojtyla), poderemos vislumbrar algumas pequenas semelhanças, sobretudo no seu pontificado até o fatídico atentado que ele sofreu, em Roma, desencadeando a debilitação de suas forças físicas até a morte. João de Deus também era bem próximo das pessoas, do povo e os aparatos de segurança papal foram intensificados a partir daquela tarde na Itália. Francisco como João são dotados de notável e notório carisma. Em relação ao polonês, este carisma ainda prevalece vivo e presente, ampliado a partir da perspectiva de sua canonização e santidade.
Embora seja cedo para aquilatar qual será a importância integral da presença deste latino-americano como sumo pontífice (e dos efeitos que produz e produzirá por, cremos, bastante tempo, em face de sua idade e disposição), a Igreja tem um dinâmico personagem capaz de promover mudanças, não propriamente no plano externo como fez João Paulo em relação à política internacional, economia e relações internacionais entre povos e Estados, mas no âmbito interno, da organização, funcionamento e prioridades da Igreja Católica. Se Wojtyla foi um legítimo estadista (ainda que se possa contestar, aqui ou ali, várias das metodologias e das atitudes que ele possa ter utilizado em sua caminhada) produzindo reflexos e reflexões importantes para um mundo em “fase de abertura”, Bergoglio pretende ocupar a posição de legítimo pastor de um rebanho (até então bastante confuso e perplexo em relação à real condição humana dos líderes religiosos, ao contrário da aparente santidade cultuada e imaginada pelos fiéis). Estamos diante, agora, de um homem sentado no trono maior de uma nação religiosa (ainda que, notoriamente, em diminuição percentual de adeptos por todo o mundo, em face da expansão dos cultos neopentecostais e da abertura para as filosofias reencarnacionistas do ocidente e do oriente).
Este homem fala diferente. Seus discursos possuem novas configurações voltadas para a inclusão e a abertura em relação às “ovelhas desgarradas”, excluídas pelas falas anteriores ou expulsas em face das prescrições religiosas em relação ao “dever ser”, sem comportar perdões ou regenerações dos “pecadores”. A Igreja vinha praticando, cultural e historicamente, o oposto, portanto, daquilo que seu maior inspirador, Jesus de Nazaré, havia prelecionado e exemplificado: o acolhimento dos pecadores a partir do reconhecimento da condição humana, errante dos filhos de Deus, em trajetória sempre ascendente. Francisco acolhe, aproxima, abraça, numa nítida intenção de permitir que os filhos pródigos (em todos os sentidos, não somente o material) possam comungar no seio da comunidade cristã e recebem o reconhecimento de serem “parte” da Comunidade Planetária, sem exceções. Seja às mães que abortaram, aos homossexuais e aos envolvidos em vícios, sua palavra e sua atitude tem sido numa única direção: - Vinde a mim!
No plano político-institucional, pelas notícias e avaliações técnicas de especialistas a que tivemos contato, o “Santo Papa” também está implementando uma política de austeridade, transparência e regularização de erros, assim como, supõe-se virão, apurações dos ilícitos e julgamento e apenação exemplar dos envolvidos. Eis, aí, uma excelente “novidade”, porquanto as facções religiosas têm sido agraciadas por benesses e instrumentos protecionistas injustificáveis, por parte dos Estados laicos, numa confusão injustificável entre os “assuntos de fé e crença” e os “negócios mundanos”. Em muitas das nações desenvolvidas, os Estados (e seus gestores e fiscalizadores) deixam de realizar ações de averiguação, controle e exação sobre as instituições religiosas, resultando num preocupante estado de libertinagem que conduz a crimes de variada configuração, o mais grave deles o da exploração da fé e dos recursos financeiros pessoais dos chamados crentes.
Neste aspecto, o saneamento que pretende fazer Francisco vem em oportuna e undécima hora, ainda que, para sua execução, interesses vários estejam em contraponto e a sempre perigosa extensão dos poderes e honrarias humanos possa configurar resistência ou ameaça à boa intenção de regularização contida nos objetivos da gestão papal. Nossos votos de que ele (e os que o assessoram) possa alcançar o intento, melhorando a imagem da instituição estatal do Vaticano.
Para todos os que trabalham com as energias dos Espíritos, a passagem do papa pelo Brasil foi muito positiva. Mesmo aqueles que temiam por sua segurança e integridade – tendo em vista o cenário anterior em que as mobilizações contra os desmandos políticos dos governos de diferentes esferas de poder estiveram na pauta e que, ainda que minoritariamente, excessos em termos de atos de violência, vandalismo e criminalidade foram constatados – ficaram surpresos com a “intocabilidade” do pontífice. Figurativamente, uma aura envolveu o homem “de Deus” e o permitiu transitar livremente “por entre as pessoas”, convivendo com elas e recebendo aquela que é uma das maiores marcas da Sociedade brasileira: a hospitalidade.
Positiva porque permitiu a interlocução da mensagem católica com outras correntes de pensamento, direta ou indiretamente, a partir das mensagens contidas seja nas homilias, seja nas pregações, seja nos gestos e nos contextos de sua peregrinação. Positiva porque deixou uma clara mensagem aos homens e mulheres, religiosos ou não, de que é preciso abrir-se para o outro, dialogar construtivamente e buscar soluções a partir da conduta pessoal de cada um. Positiva porque sua simplicidade de ser e sau “humildade” no trajar e demais componentes que envolvem seu ministério são exemplos para aqueles que imaginavam a mantença do quadro de opulência e ostentação dos tradicionais representantes das igrejas em geral, com raras exceções, assim como para aqueles que, investidos em poderes temporais, no cenário sócio-político, adornam-se de elementos superficiais e desnecessários, bem como se valem da posição que ocupam para se locupletarem com outras vantagens, a preço exorbitante pago pelos cidadãos contribuintes. Positiva porque permite que, mesmo que não hajam mudanças significativas em relação à teoria e aos dogmas da religião da cristandade, já que estas atravessam séculos sem alterações e pertencem ao caráter constitutivo em si da crença católica, a práxis e a conduta em relação às chamadas “verdades religiosas” permite divisar uma igreja mais próxima do povo e, portanto, mais aberta à perspectiva da realidade “de dentro para fora”, isto é, do ser para o existir, do pensar para o agir, ao invés da prescrição de condutas perfeccionistas bem distantes da realidade (espiritual) de cada fiel ou, mais amplamente, de cada um dos “filhos de Deus”.
Esta configuração é, em essência, o melhor recado que podemos tirar da presença, entre nós, de Francisco de Roma: sua disposição em reinventar a Igreja a partir de novos comportamentos e atitudes. Aliás, é isto também que esperamos do movimento espírita: sua abertura para os “vários e muitos” espiritismos que por aí existem, distanciando-nos enfim das “prescrições de conduta espírita”, dos manuais de “pureza doutrinária”, das exceções e afastamentos, das indiferenças e dos silêncios em relação aos, digamos, “diferentes”. Ao deixarmos de lado a “autoridade” que possamos achar ter em relação ao conteúdo das obras espíritas, por meio de comportamentos de censura e de admoestação àqueles que, no nosso entender, estejam atuando “fora” do padrão que convencionamos adotar, em instituições maiores de gestão espírita, reinventamos o Movimento Espírita, para permitir a aproximação e o diálogo COM TODOS, investindo nas semelhanças e não nas mínimas diferenças (de entendimento sobre os princípios ou teorias espiritistas), dando passos audaciosos na direção do entendimento e das parcerias, tão importantes para uma Sociedade carente e em transição. Mais que isso, descemos o degrau de uma aparente “superioridade” derivada da teoria, da interpretação ou da prática, em que tradicionalmente podem se colocar alguns espíritas cuja intransigência não tem permitido os necessários avanços. Não há um ÚNICO modo de entender o Espiritismo. Não há uma MESMA forma de “trabalhar com os Espíritos”. Vale dizer: se não estamos abertos para aprender com os outros, dentro e fora das hostes espíritas, não estamos materializando as aspirações traçadas pelos Espíritos que laboraram com Kardec e que o levaram, conclusivamente, a pontuar:
“O Espiritismo tem princípios que, em razão do fato de estarem fundados sobre as leis da Natureza, e não sobre abstrações metafísicas, tendem a se tornar, e serão certamente um dia, os da universalidade dos homens; todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo será, por toda parte, organizado da mesma maneira; que os Espíritas do mundo inteiro se sujeitarão a um regime uniforme, a um mesmo modo de proceder; que deverão esperar a luz de um ponto fixo para o qual deverão fixar os seus olhares, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra não formarão um dia senão uma única nação, governada por um único chefe, regulada pelo mesmo código de leis, e sujeita aos mesmos usos. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos costumes, aos caracteres, aos climas de cada um” (Kardec, Allan. Constituição do Espiritismo, Revista Espírita, dezembro de 1868).
Vejo este Francisco de Roma importante, também, para o meio espírita. Assim como o foram, para a Humanidade e o Espiritismo, outros Franciscos, o de Assis e o de Uberaba, o Xavier. E que estejamos caminhando para a necessária UNIÃO ENTRE OS ESPÍRITAS, como o Codificador tanto desejou: “Todos aqueles que se dizem espíritas não pensam do mesmo modo sobre todos os pontos, a divisão existe de fato, e é bem mais prejudicial porque pode chegar que não se saiba se, num Espírita, se tem um aliado ou um antagonista. O que faz a força é o universo; ora, uma união franca não poderia existir entre pessoas interessadas, moral e materialmente, a não seguir o mesmo caminho, e que não perseguem o mesmo objetivo. Dez homens sinceramente unidos por um pensamento comum são mais fortes do que cem que não se entendem. Em semelhante caso, a mistura de objetivos divergentes tira a força de coesão entre aqueles que quereriam andar juntos, absolutamente como um líquido que, se infiltrando em um corpo, é um obstáculo para a agregação das moléculas” (Kardec, cit.)
Sem divisão e inclusivamente, portanto!
Marcelo Henrique
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